quinta-feira, 18 de março de 2010

No caminho da escola




Todos os dias eu parava uns instantes ao pé da vedação. Mesmo nos dias em que, atrasado para a escola, vinha a correr desde casa. A curiosidade prevalecia em todas as circunstâncias. Todos os dias, ao vislumbrá-la já de longe, pensava no que tinha de tão especial aquele terreno que ela guardava.

Não percebia porque aquele pedaço de terra não me estava naturalmente acessível. Porque diferia dos restantes. Teria enterrado tesouros escondidos de algum pirata? Existiria no meio daquele afastado conjunto de árvores as ruínas de um palácio de algum rei? Ou encontraria a entrada para um túnel secreto que se dizia existir desde o tempo dos romanos? Ainda convenci duas ou três vezes o Henrique a parar comigo e a dar os seus palpites sobre o mistério, mas o resto dos dias ficava solitário com aqueles minutos.

Os conjuntos de picos que o arame fazia em alguns locais da vedação – arame farpado, ouvi certa vez o meu pai dizer – soavam ameaçadores e pareciam informar-me especificamente que nem pensasse em faltar-lhes ao respeito. Apesar daquela aparência ferrugenta estavam ali para estabelecer um limite às minhas aventuras.

Não aceitei a mensagem. Certa vez olhei para um deles em especial; aquele que parecia mais perfeito. Decidi nomeá-lo como uma espécie de chefe de todos os outros picos. A ideia era que se eu perdesse o medo a ele, poderia finalmente ultrapassar sem receio todo aquele limite. Poderia por fim conhecer todos os mistérios que aquele terreno encerrava. Poderia, como um troféu, ostentar orgulhosamente essa coragem perante os meus amigos.

Por isso chegou o dia. Chegou o dia em que perdi o medo a toda a vedação. Chegou o dia em que entrei no terreno e vi que afinal era igual aos outros, sem tesouros, túneis ou palácios. Chegou o dia em que contei a aventura aos olhos esbugalhados dos amigos do recreio. Chegou o dia em que escondi as feridas na mão e nas pernas causadas pelos picos a quem faltei ao respeito.

Agora, a caminho da escola, já não paro ao pé da vedação. Até finjo que não a vejo. Mas escuto os risos de mofa que os picos de arame me dirigem.


(Esta história foi escrita em resposta a um desafio que foi colocado n'O Blogue que ninguém lê!. O João, que teve a amabilidade de a publicar, teve também a amabilidade de me autorizar a utilização da fotografia inspiradora.)

2 comentários:

JvT disse...

E ficou uma linda história!

Obrigado por participar e por me contrariar, lendo o ninguém lê!

Abraço
João

Emanuel disse...

João,

O prazer foi meu. Por participar. E é um prazer quotidiano ler o que 'ninguém lê'

Abraço